Especialista da USP pede fim imediato da vaquejada

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vaquejada“Todos os procedimentos que os peões impõem aos bovinos nas provas de vaquejada são abusivos tanto em relação à integridade e à saúde do corpo físico desses animais quanto em relação à sua estrutura mental ou psíquica, uma vez que estes animais são expostos, na arena, a perseguição e maus tratos.”

Esta é a conclusão final de um parecer técnico a respeito das provas de vaquejada que foi usado pela Procuradoria-Geral da República na ação que pediu a inconstitucionalidade de uma lei do Ceará que regulamentava o esporte.

Irvenia Prada, professora aposentada da faculdade de medicina veterinária da Universidade de São Paulo (USP), foi uma das autoras do parecer.

Em entrevista à Folha por e-mail, ela ratifica sua posição a favor do fim da vaquejada e contesta as ações que a Associação Brasileira de Vaquejada (ABVAQ) está implementando para impedir maus-tratos aos animais.

Folha – Qual sua opinião sobre a vaquejada? A senhora acha que ela deveria ser proibida no país?

Irvenia Prada – Todos nós, ligados aos movimentos de proteção e defesa animal, desejamos que sejam abolidos todos os procedimentos que subjugam e exploram os animais. Com alguns, temos de “negociar”, pois não há possibilidade de que parem agora, como é o caso da produção industrial de alimentos de origem animal e a utilização de animais em testes e pesquisas. Mas, tolerar que os animais sejam utilizados em espetáculos de diversão, já é demais! Sim, eu sou de opinião que a vaquejada, assim como outros eventos que submetem animais a sofrimento deveriam sim, ser proibidos imediatamente.

A senhora fez um laudo técnico que embasou a ação da Procuradoria-Geral da República contra a lei do Ceará que regulamentava a vaquejada. Ele foi encomendado pela PGR?

Não, o parecer técnico sobre vaquejada que elaborei juntamente com a médica veterinária Dra. Vania Plaza Nunes não foi solicitado pela PGR. Ele nos foi solicitado pelo Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, entidade à qual ambas somos ligadas. Esse parecer e outros anexos tiveram o objetivo de instruir o processo que já se achava em andamento.

Do parecer técnico constou a análise crítica de repercussões negativas acontecerem tanto no corpo quanto na mente dos animais, quando submetidos aos treinamentos e provas da vaquejada.

Defensores da vaquejada argumentam que é possível praticar o esporte minimizando os riscos aos animais. A ABVAQ diz que, por suas regras atuais –que incluem o uso de protetores de cauda, luvas que não cortam a cauda, um colchão de areia de 50cm para amortecer a queda etc.–, os animais não sofrem. A senhora acha possível realizar uma vaquejada sem que os animais sofram?

Não, eu não acho possível a realização de uma vaquejada sem sofrimento dos animais. Os próprios defensores da vaquejada admitem a vivência de sofrimento nos animais, ao argumentarem que a regulamentação do evento possa “minimizar” os riscos dos animais. Apetrechos como protetor de cauda, luvas e colchões são recursos utilizados mais para aliviar a consciência dos praticantes –ou para “venderem” a imagem de que são cuidadosos–, do que de fato para suprimir o sofrimento dos animais.

Um estudo da Universidade Estadual de Alagoas que mede o índice de estresse dos animais da vaquejada – medindo concentração de um hormônio específico, em repouso, antes e depois da corrida – mostrou que não há variação significativa, o que indicaria que os animais não são submetidos a sofrimento mental. Seu laudo investigou esse tipo de coisa? A senhora acha possível tal conclusão?

O parecer técnico que elaboramos focalizou cuidadosamente as possibilidades de ocorrência de lesões físicas e de vivência de dor/sofrimento antes, durante e após o evento da vaquejada, concluindo que os bovinos utilizados nos treinamentos e nas provas de vaquejada têm estrutura física, organização neurossensorial e dimensão psíquica (mental) compatíveis com a vivência de dor/sofrimento ao serem submetidos às condições em que essas provas são realizadas e, ainda, às condições em que os repetitivos treinamentos acontecem. O hormônio a que você se refere é o cortisol e, se o experimento for realizado com rigoroso critério metodológico, o esperado é que ele sinalize sim a vivência de estresse agudo nos animais utilizados nas vaquejadas. De qualquer maneira, é sempre necessário que se analise com profundidade todo o contexto, o que fizemos com responsabilidade, no parecer técnico que elaboramos.

Ao menos cinco conselhos estaduais de medicina veterinária (da Bahia, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Pernambuco e Alagoas) manifestaram-se favoráveis à continuidade da prática da vaquejada, desde que regulamentada – mesmo argumento usado pela ABVAQ. Como a senhora vê essa proposta?

Se de um lado temos a manifestação favorável à prática da vaquejada, desses cinco conselhos regionais, de outra parte temos a manifestação contrária, do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV), em virtude do trabalho efetuado, a respeito, por sua Comissão de Ética. Temos também manifestação da Associação Brasileira de Medicina Veterinária Legal (ABMVL), que em 24 de outubro de 2016 emitiu nota pública quanto à inconstitucionalidade da vaquejada, inclusive destacando a propriedade do parecer que elaboramos, como segue: “O referido parecer técnico se constitui em verdadeira prova material, demonstrando, de maneira clara e detalhada, que os animais envolvidos na prática da vaquejada de fato experimentam dor, sofrimento, estresse e maus-tratos”.

Por fim gostaria de dizer que desejamos e confiamos (todos nós, que trabalhamos em defesa dos indefesos) que os seres humanos, hoje responsáveis por esses eventos e deles participantes, passem a ver os animais com “outro olhar”, sentindo que eles não estão à nossa disposição, mas que merecem ser respeitados em sua capacidade de fruírem dor/sofrimento, no direito natural à sua integridade física/mental e em seu direito natural à própria vida. Essa é a forma de dignidade que, segundo nosso desejo, um dia a humanidade irá conquistar e, portanto, merecer.

Fonte: Folha de S. Paulo