sábado, abril 27, 2024
Home BRASIL Cresce Abandono paterno no Brasil nos últimos anos

Cresce Abandono paterno no Brasil nos últimos anos

0
50
por Jorge Cavalcanti*
Cresce no Brasil, ano a ano, o número de crianças que são registradas sem o reconhecimento do pai. De 2018 para cá, os cartórios expediram quase um milhão de certidões de nascimento apenas com o nome da mãe. Em 2023, foram mais de 172 mil meninas e meninos com o estado de filiação incompleto. É o maior número da série histórica que começa em 2016, de acordo com o Portal da Transparência do Registro Civil. O abandono paterno é um fenômeno social que tem atravessado o tempo e impactado sobremaneira as mulheres, principalmente as negras e pobres, e a trajetória de vida dessas crianças.

Em Pernambuco, a maior referência quando o assunto é a busca pelo reconhecimento paterno e seus efeitos legais e sociais chama-se Marli Márcia da Silva. Ela é presidente da Associação das Mães Solteiras de Pernambuco (Apemas). Marli começou a luta em 1992, nos tempos em que, socialmente, a figura da mãe ainda era condicionada ao estado civil da mulher.

“Quando engravidei, o pai da criança não quis assumir e nos abandonou. Acabei expulsa de casa pelo marido da minha irmã. Foram momentos muito difíceis. Sofri bastante preconceito. Por isso, tento fazer com que outras mulheres não precisem passar pelo que passei”, conta Marli, mãe de um rapaz que vai completar 32 anos, a mesma idade da associação, cujo lema é “você não está sozinha”.

A presidente da Associação é procurada por mães jovens que não sabem por onde começar o caminho pelo reconhecimento paterno de suas crianças. Moradora do Vasco da Gama, na Zona Norte do Recife, Marli passou a ser vista também como um ponto de apoio para a resolução de problemas do cotidiano do bairro. “Tem sempre gente batendo à minha porta. Tento ajudar da forma que posso”.

São mulheres de diversas localidades do Recife, de outras cidades pernambucanas e até de outros Estados que procuram a associação de mães. Na semana em que conversou com a reportagem, a presidente da Apemas auxiliava Elaine a procurar a Defensoria Pública de Pernambuco para dar início ao processo do reconhecimento paterno da filha mais nova, de 1 ano e 6 meses.

As dificuldades são muitas, às vezes invisíveis para quem não vivencia a rotina da mãe solo de difícil situação financeira. Do dinheiro para pagar a passagem de ônibus até conseguir alguém para tomar conta dos pequenos quando precisa resolver alguma demanda fora de casa. “Da outra vez, quando cheguei lá, fui informada que o horário de atendimento já tinha terminado. Me atrasei porque precisei esperar minha mãe chegar para ficar com as crianças”, conta Elaine.

Marli foi fundamental na realização de campanhas e mutirões de reconhecimento paterno, inclusive dentro de presídios. Em 2014, ela teve o trabalho retratado no documentário Paternidade além das grades, da Modo Operante Produções. “A Associação ajudou, direta e indiretamente, no reconhecimento paterno em cerca de 50 mil registros civis”, conta. Tanta dedicação ao tema ao longo de mais de três décadas de trabalho fez Marli se especializar. Hoje ela também é bacharel em Direito.

O abandono em números de Marco Zero

Reconhecimento paterno é um direito

Está no artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente: “o reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça”. Nas relações heteronormativas, é um direito, inclusive, dos filhos gerados fora do casamento.

Nem todas mães sabem, mas a mulher pode indicar o nome do suposto pai ao cartório, que encaminhará as informações à Justiça para dar início ao processo de investigação de paternidade. Não há prazo para o reconhecimento tardio. É possível também a efetivação do “pai do coração”, quando o padrasto ou outro homem assume legalmente a função de pai afetivo e põe o nome como filiação.

“A legislação avançou. Hoje há o exame de DNA. A luta agora é para que o Estado implante um melhor sistema para dar fim a essa situação que torna tão fácil os homens terem seus filhos e não assumirem. E a mulher ter que ficar batendo cabeça atrás da Justiça, de ter que deixar de trabalhar para correr atrás de exame e acompanhar processo”, indigna-se Marli.

Em parceria com outras organizações, Apemas participa de campanhas pela paternidade. Crédito: Divulgação/Apemas

“Pãe” não existe, o que há é uma mãe sobrecarregada

O alerta é da psicóloga Edna Granja. “Há um colapso desse modelo de maternalismo e todo um impacto na primeira infância. Como é ser uma criança criada por uma mulher esgotada e qual o impacto disso na saúde mental dessas mulheres que não contam com rede de apoio remunerada?”, questiona ela, também cofundadora do Instituto Panapaná.

O debate provocado por Edna, o da economia do cuidado, foi tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em novembro do ano passado. A psicóloga chama atenção também para os prejuízos causados aos homens por conta deste modelo de masculinidade. “Fica parecendo que nós, mulheres, estamos chamando os homens para uma cilada. Mas, para eles, há a oportunidade de uma revolução afetiva que pode acontecer”.

Para a psicóloga, outro fator que pode ser obstáculo ao reconhecimento paterno é o da crise econômica. “Na escassez, tudo fica mais difícil. Os vínculos familiares podem ser fragilizados. Mas é preciso destacar que a função de pai vai  além de prover materialmente”.

Defensoria Pública é porta de entrada gratuita

São necessários, de início, os documentos RG, CPF, comprovante de residência, certidão de nascimento da criança ou a declaração de nascido vivo da maternidade, além da indicação do nome e do endereço do suposto pai. A partir daí, tem início a ação de investigação de paternidade. Se o homem concordar em fazer o exame de DNA, não há a necessidade de processo.

“A nossa  demanda é alta. Trabalhamos a divulgação de campanhas para que o serviço se torne bem conhecido nas comunidades”, afirma o defensor público-geral Henrique Seixas. São realizados cerca de 70 exames por mês. No ano passado, foram feitos 828 testes de DNA. Boa parte desses testes foram realizados nos mutirões de testagem realizados pelos Centros Judiciários de Solução de Conflitos do TJPE.

No Recife, o serviço é fornecido na avenida Manoel Borba, 650, na Boa Vista. Quem reside em cidades da região metropolitana ou do interior, deve procurar um núcleo mais próximo da Defensoria Pública. Para consultar o número de telefone, clique aqui.

Advogados dialogam com juiz durante mutirão de DNA do Tribunal de Justiça. Crédito: Ascom/TJPE

*Jornalista com 19 anos de atuação profissional e especial interesse na política e em narrativas de garantia, defesa e promoção de Direitos Humanos e Segurança Cidadã.